Minha mãe assistiu Stranger Things em um só dia

São oito episódios. Uma média de 49 minutos cada um. Quase 400 minutos no total. Sete horas na frente da TV. Ou do computador, se você for igual a mim e não tiver aquele super tecnológico aparelho televisor e tiver preguiça de montar toda a quinquilharia na sala.

Eu preciso confessar que ainda não assisti a essa série. Tenho aflição dessas do tipo only-one-season. Uma maratona, cabou-se o prazer.

Minha mãe não sou eu.

Num domingo, depois da minha irmã ter enchido o saco pra ela assistir, ela sentou no sofá e soltou: traz o computador pra gente ver aquele negócio que tu queria. Sete horas depois, lá estava ela falando, nível hard, sobre as opiniões dela a respeito dos personagens e de toda a trama. Não reconheci aquela mulher na sala.

Meu pai também não. “Leila, você não fez nada”. “Fiz mesmo não”. Não teve briga, nem a conversa continuou. Minha mãe tinha direito de ficar um dia inteiro sem fazer NADA.

O que eu fiquei me perguntando foi “por quê”? Eu nunca (nunca do tipo JAMAIS) vi minha mãe passar um dia inteiro deitada na frente da televisão sem fazer absolutamente nada. De verdade, nunca. Todos os filmes são interrompidos por um sono incontrolável, por uma leitura que não dá mais para protelar, por um armário que obviamente precisa ser limpo às 22h do domingo. Sério isso, mãe? Senta, por favor. Fica quieta dois minutos.

Até ali, nossos pedidos caíam num vácuo cavernoso. Não naquele dia.

São sete dias na semana. Uma média de 10 horas por dia – útil. Final de semana é praticamente integral. Por baixo, coloquemos 6000 minutos. Aproximadamente cem horas de trabalho por semana.

A televisão é o antídoto da minha progenitora e talvez de todo ser humano moderno. E o veneno é tudo o que acontece ao redor desse aparelho.

Pra quem já não pode, ou ainda não tem nem como, reconstruir a vida, refazer escolhas erradas ou qualquer outra coisa que de alguma maneira melhore o curso do bonde que já vai andando, o caminho é ficar olhando pra sombra da caverna. E pare de ver jornal. Jornal, guardadas as devidas proporções, não é sombra. Ver um jornal de notícias decente se compara à sensação daquele primeiro raio de luz que te cega as vistas quando você sai de um lugar escuro, depois de ter ficado lá por muito tempo. Logo, não é sombra.

Sombra fresca é sentar na frente de um computador ou de uma televisão depois de um dia longo de trabalho e assistir a absolutamente QUALQUER COISA que, se possível, nem sequer tenha paralelo com a humanidade tangível. Se for algo relacionado a coisas estranhas, como minha mãe claramente aprovou, melhor ainda. É um momento pra desligar o cérebro quase que literalmente e conscientemente se deixar engolir por essa maravilhosa não-realidade criada.

Quem nunca fez uma maratona que atire a primeira pedra. (e quem nunca fez, faça)

Eu não julgo a minha mãe. E você também não deve julgá-la.

Na alegoria de Platão, o jovem que saiu da caverna foi humilhado e ridicularizado quando voltou pra lá e contou o que viu. Sem a parte da violência verbal, a galera talvez tivesse até com a razão. (eu deveria usar essa palavra? Hmmm)

Acontece que desse lado de cá ninguém quer saber, querido. A gente já viu o que tinha que ver. Hoje, nós escolhemos estar desse lado. Se a gente vai sair? Me pergunta amanhã.

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